sexta-feira, 24 de julho de 2009

Encontros


Ela olhava para mim. Os seus olhos claros brilhavam. Aquele tom azulado metia-me medo. Via de longe. Abandonada. Sozinha. Tal como vemos o horizonte e queremos chegar a ele, eu queria chegar a ti. Mas não sabia. Estavas ali, lá, além. Escondias-te em ti mesma. Pensei em libertar-te. Acelerei o passo. Aproximei-me. Com calma. Encolheste-te. Agarraste-te em ti própria. Estavas com medo de te libertares. Analisei o teu rosto coberto. Contemplei os traços do teu corpo. Ali estava ela. Que náusea. Que angústia. Baixei-me. Ficámos frente a frente. Continuavas frágil. Olhei-te. Derreti-me com a tua disponibilidade. Quis tirar-te o pano que te envolvia a face. Não tive coragem. Ias ficar ferida. Eu não queria isso para ti. Sorriste delicadamente pela primeira vez. Senti-me correspondido. Não quis incomodar-te mais. Levantei-me. Com ternura encarei o que me transparecias. Continuei a linha da minha vida. Ao caminhar apeteceu-me olhar para trás. Ver-te mais uma vez. Quando o fiz já não estavas lá. Hoje deixo as minhas pegadas. O vento levar-nos-á a um próximo encontro.

4 comentários:

_-caty-_ disse...

wow, realmente retrata bastante a fotografia. O texto está espectacular, parabéns e continua :)

entremares disse...

- É hoje ?
- É hoje Marilia, é sim... mas tem a certeza do que pretende fazer ?
- Certeza ? ... Acha mesmo que estou em posição de poder ter certezas ?
E enquanto dizia isto, sorria.
Tinha um sorriso bonito, era o que todos diziam. Um sorriso bonito, lábios cor de morango, um nariz esguio e olhos de um violeta raro. A cabeleira, longa e cinzenta, emoldurava um rosto sereno, simétrico, pacífico até.
Era dificil definir aquele rosto, para além da sua mais que evidente beleza. Transparecia uma energia cativante, uma aura de simpatia que nem mesmo a terrível cicatriz que o rasgava de lado a lado conseguia ocultar.
No auge da juventude, um improvável acidente de viação deitara tudo a perder; o resultado mais evidente fora precisamente aquela cicatriz, que lhe rasgava a face quase de lado a lado.
As feridas do corpo saram sempre mais depressa que as da alma – dizia ela. E com razão.
Os medos, os pesadelos, a insegurança... esses iriam permanecer durante muito tempo, mesmo que a cirurgia plástica conseguisse devolver a beleza original ao seu rosto.
Para a alma... só o bálsamo do tempo.
Tempo... muito mais tempo do que aquele que já passara, quase um ano em hospitais, a sarar o corpo das mazelas daquela noite fatídica, onde uma alegre festa de aniversário se transformara num calvário doloroso.
Mas a vida era isso mesmo... um sopro de instantes imprevisíveis.
A enfermeira apertou-lhe a mão, carinhosamente.
- Marilia... sabe que não precisa de fazer isto...
- Sei sim,Joana... mas mesmo assim... vou fazê-lo... eu preciso.
Retribuiu-lhe o gesto de afecto, enquanto se deitava na maca.
Chegara finalmente o dia.
Dali a pouco, um cirurgião pegaria nela e devolver-lhe-ia o seu rosto.
E, com o rosto, um pedaço da alma voltaria também.
- Eu fico aqui à espera – ainda repetiu baixinho a enfermeira, enquanto ia empurrando a maca ao longo do corredor, em direcção ao bloco operatório.
A porta envidraçada abriu-se e um outro enfermeiro veio apanhá-la.
Acenou-lhe uma última vez.
- Eu fico aqui... prometo.

Segunda-feira. Um dia auspicioso.
Uma nova semana, quem sabia senão uma nova vida também... um novo ciclo.
No quarto número 12 do hospital, reinava o silêncio.
A enfermeira Joana lançou um olhar esperançoso ao médico, um cirurgião ainda muito jovem. Ele sorriu-lhe, animado.
- Então, Marilia... vamos a isso ? – e o médico aproximou-se dela.
Marilia continuava sentada na berma da cama, as mãos a apertar com força o cobertor branco. A face, completamente oculta por ligaduras, não permitia vislumbrar a ansiedade que lhe assaltava a alma. Só um leve tremor dos dedos denunciava a angústia que lhe queimava as entranhas. Baixou a cabeça, numa concordância muda.
Joana, a enfermeira, aproximou-se também e, com todo o cuidado possível, começou a desenrolar a comprida ligadura que cobria por compelto o rosto.
Aqueles segundos – como era possível ? – eram a parte mais dolorosa...
Finalmente... a última volta...
A expressão de vitória do médico espelhava o sucesso da operação.
O rosto de Marilia, límpido e tranquilo, não exibia nenhuma recordação da cicatriz que, até há poucos dias atrás, o desfeara de forma tão atroz.
A enfermeira levou a mão aos lábios, contendo um esgar de admiração – que rosto lindo.
- E então... – murmurou Marilia, a voz a tremer-lhe de emoção - ... como estou ?
A enfermeira tomou-lhe as mãos e fê-las tocar o rosto, agora já livre das ligaduras.
- Marília... o seu rosto... está lindo... tem o seu rosto de volta.... eu sabia que tudo iria correr bem...
Ela percorreu o rosto com as mãos; a boca, o nariz, os olhos, a testa... todos os pequenos recantos antes interrompidos pelas marcas do acidente... haviam desaparecido.
- A cicatriz... – gaguejou ela, a voz trémula - ... desapareceu ? A sério ?
- Completamente, Marilia... – e o médico regojizava - ... é como se nunca tivesse tido aquele acidente...
Marilia sorriu, feliz.
O médico, esfusiante de alegria, correu até à mesa de cabeceira, pegando no espelho que ali se encontrava.

(continua...)

entremares disse...

(... continuação)

- Marilia... – continuou ele – despareceu por completo, acredite... – e colocou-lhe o espelho defronte do rosto – veja por si mesma, veja ... nem um arranhão.
A enfermeira levou as mãos à cabeça, aflita.
- Doutor... – ainda tentou, mas a voz morreu-lhe na garganta.
Marilia segurou o espelho que o médico lhe colocara nas mãos.
Queria acreditar. Fez um esforço enorme, como se todo o seu ser pudesse vergar o tempo à sua vontade... e fazê-lo recuar até àquela noite fatídica... mas infelizmente, tal não seria possível. Assim, limitou-se a presentear o médico com o melhor dos sorrisos.
- Eu bem que gostava, doutor... eu bem que gostava...
Por mais que tentasse ... nunca o conseguiria. No principio, ainda acalentara esperanças, os médicos repetiam vezes sem conta que a cegueira seria temporária, talvez um nervo magoado, nada de muito grave.
No seu íntimo, sempre soube que seria definitivo.
O rosto podia recuperar a beleza de tempos idos, o corpo recuperaria certamente de todas as mazelas, mas o resto...
Continuou a segurar o espelho, a imagem refletida.
- Ao menos – murmurou – que esteja bela para os outros...

Anónimo disse...

o que eu estava procurando, obrigado